Por Reinaldo Le Grazie e Pedro Eroles
Valor Econômico • 01/09/2023
O histórico da indústria de pagamentos no Brasil traz diversas evidências de que muitas facilidades de hoje foram disponibilizadas de forma precoce, seja pela conveniência e inovação do produto, seja por um ímpeto de promoção de maior competição.
A indústria de pagamentos no Brasil sempre foi muito eficiente e, nos últimos anos, surgiram vários novos participantes oferecendo produtos inovadores. Aos clientes, foram oferecidos novos cartões, plataformas eletrônicas e atendimento remoto. Aos comerciantes, alternativas de recebimento de forma diferenciada, possibilidade de antecipação dos recursos e recebimento em contas digitais providas por instituições não bancárias. Nesse ambiente, o parcelado sem juros, que foi a sequência do cheque pré-datado, sempre foi um instrumento muito relevante para o comércio e considerado uma “jabuticaba” brasileira.
No âmbito desse processo dinâmico e considerando o progresso na digitalização de pagamentos, a atividade de adquirência por si só passou a ter menor competitividade, precisando agregar oferta de crédito e tecnologia para acelerar a integração com a retaguarda do estabelecimento comercial, trabalhando para a construção de um ecossistema de pagamentos. Percebe-se, então, que a capacidade de competir anda lado a lado com a de agregar outros serviços.
Hoje, com o benefício do olhar retrospectivo, observamos que o mercado oferece prazos variados de liquidação (cada qual com suas condições}, a distribuição do market share é menos concentrada, a base é mais ampla e até mesmo a “jabuticaba” do parcelado sem juros tem um primo estrangeiro chamado BNPL (Buy Now, Pay Later).
Em um pagamento qualquer com cartão de crédito, podemos dizer que a jornada do cliente se inicia na instituição que emite o cartão para o cliente (em geral, um banco ou uma instituição de pagamento}. São essas instituições que arcam com o risco de o cliente não pagar a fatura, tanto para compras a vista ou a prazo. Portanto, o emissor do cartão tem contato principal com o cliente pessoa física e, entre o emissor e a ponta final que chamaremos de lojista, há vários outros provedores de serviço, tais como as bandeiras e as maquininhas (credenciadoras ou subcredenciadoras}. São as empresas de maquininhas que têm o contato com esse chamado cliente final, o estabelecimento comercial.
Quando o cliente, com o cartão de crédito na mão, faz uma compra e não paga, o lojista não deixará de receber. O emissor do cartão é quem paga a maior parte do custo da inadimplência que, por sinal, nesse mês de agosto, bateu o recorde histórico. Os outros participantes do modelo também perdem algo, mas a maior parte do prejuízo da inadimplência fica com a instituição emissora do cartão.
Para fazer frente ao custo operacional e ao risco de inadimplência, o emissor se remunera de duas maneiras: uma comissão conhecida com Taxa de Intercâmbio (TIC} e pela cobrança de juros sobre os clientes que atrasam o pagamento do cartão, o famoso rotativo. É aqui que existe a relação entre o rotativo e o parcelado sem juros. Ou seja, o importante instrumento de consumo “parcelado sem juros” depende da receita do juro via o “rotativo”. Quando o emissor tiver receita menor via o “rotativo”, deverá ser compensado pela maior TIC ou por menor inadimplência.
Como a inadimplência aumenta junto com o prazo da operação, uma das sugestões é reduzir o número de parcelas. Assim trocar-se-ia a receita do rotativo pelo menor custo da inadimplência.
O outro lado da equação é que, ao encurtar o prazo para pagamentos, o consumo tende a recuar impactando a atividade econômica como um todo. Assim, o coro é forte em defesa desse poderoso instrumento facilitador do comércio.
Porém, esse é um equilíbrio tênue. O custo de crédito no Brasil é alto por várias razões, a começar por um imposto chamado IOF, que foi instituído como regulatório e se tornou fonte de arrecadação. Essa é maneira mais eficiente de reduzir o custo do financiamento do consumidor de baixa renda e só depende da contribuição do governo. Outros motivos do alto custo de capital deixaremos para outra oportunidade.
Portanto, se nos últimos anos assistimos uma revolução em pagamentos no Brasil, com mais competição, com produtos mais eficientes, seguros e baratos, onde os incumbentes foram surpreendidos com a postura empreendedora dos novos entrantes, com a oferta de tecnologia que permitiu fazer melhor e mais barato, essa história pode se repetir. O tsunami desbancou vários incumbentes de então.
Parte dos incumbentes de hoje são os novos entrantes da década passada e um novo tsunami pode acontecer nesse mercado.
Há anos se fala que algo teria que ser feito com relação aos elevados juros do rotativo do cartão de crédito no Brasil e parece que, dessa vez, de fato será feito. Intervenção estatal mexe com os modelos de negócios, para o bem ou para o mal, principalmente quando é via preços e, portanto, independente do mérito, o provável estabelecimento do limite está chegando e vai mudar tanto o produto em si quanto as relações com outros serviços disponíveis.
Já para o parcelado sem juros, que também há anos se fala que tem que mudar, tudo indica que não deve ter alteração no momento, mas é muito provável que terá em breve. Que não se durma em berço esplêndido, porque muitas alternativas estão a caminho, tais como, parcelado emissor, pix garantido e outras opções que virão para disruptar o status quo, ideias essas que talvez ainda nem estejam no cenário, mas que encontram solo fértil com a tecnologia disponível e o ambiente competitivo que se construiu com a regulação adequada.
É impossível ter a certeza de como será o desenho da indústria brasileira de pagamentos no futuro, mas com a demonstração que o mercado vem dando em ser inovativo e implacável, tudo indica que será uma evolução agradável de assistir.